A cobertura privada dos benefícios por incapacidade
SFA - 16 de outubro de 2019Na última semana, um tema interessante da reforma da Previdência tem sido ressaltado pela imprensa. O texto proposto, dando nova redação ao art. 201, § 10 da CF/88, é o seguinte: “Lei complementar poderá disciplinar a cobertura de benefícios não programados, inclusive os decorrentes de acidente do trabalho, a ser atendida concorrentemente pelo Regime Geral de Previdência Social e pelo setor privado”.
Apesar de ser apontada como previsão inédita de abertura da cobertura previdenciária ao mercado, a EC 20/98, ao inserir o referido parágrafo, já havia previsto a possibilidade de atuação do setor privado na cobertura previdenciária, ainda que limitada a acidentes de trabalho. A redação ainda vigente prevê: “Lei disciplinará a cobertura do risco de acidente do trabalho, a ser atendida concorrentemente pelo regime geral de previdência social e pelo setor privado”.
O preceito hoje existente, após 20 anos de sua inclusão na Constituição, nunca foi regulamentado. A PEC 06, além de alargar as possibilidades de atuação do setor privado para todos os benefícios de risco, demanda lei complementar para a disciplina específica do tema. A princípio, a cobertura estatal restaria limitada a aposentadorias programadas e pensões, somente.
O assunto é complexo. Quando da reforma previdenciária de 1998, posicionei-me contra a atuação do segmento privado na cobertura previdenciária, a qual, naquele momento, me parecia um retrocesso, pois o seguro acidentário obrigatório fora privado até a estatização da cobertura e respectiva inclusão no modelo público de previdência social, pela lei 5.316/67.
O modelo estatal, como sugerido por Beveridge, tinha como escopo eliminar as deficiências do modelo privado da primeira metade do século XX. As dificuldades giravam em torno dos litígios derivados de falhas de cobertura ou negativas de indenização por parte das seguradoras, o que era relativamente comum. Da mesma forma, a cobertura de prestações acidentárias sempre foi potencialmente complexa, tendo em vista a elevada subjetividade do eventual nexo causal do sinistro com o trabalho.
Enfim, a incorporação do seguro de acidentes do trabalho ao modelo estatal de proteção social derivava da chamada “teoria do risco social”, na qual o sinistro sofrido por um trabalhador demandaria cobertura solidária de toda a sociedade, assegurando cobertura efetiva ao trabalhador, independentemente da situação econômica do empregador, das interpretações das seguradoras ou mesmo da eventual culpa do acidentado.
Sem embargo, temos de reconhecer que o modelo estatal está distante de uma cobertura minimamente adequada. As dificuldades administrativas estão colapsando a autarquia previdenciária. O modelo solidário de cobertura funciona precariamente, com particular prejuízo daqueles de demandam prestações com urgência, como acidentados. Enquanto para benefícios programados a praxe internacional seja a manutenção dos modelos estatais, os benefícios de risco contam com organizações variadas e funcionais.
A atuação privada está longe de ser solução mágica aos problemas do sistema previdenciário, incluindo a cobertura de benefícios por incapacidade. Todavia, é inegável que – no caso particular da cobertura de prestações não programadas – há experiências de sucesso no estrangeiro, as quais, talvez, possam nos orientar a viabilizar alguma atuação efetiva e eficiente, sem as desventuras do modelo estatal vigente, o qual não tem a menor perspectiva de melhora, tendo em vista as severas restrições econômicas e de pessoal que enfrentaremos nos próximos anos.
Mais do que assumir a negativa automática de modelo privado paralelo de cobertura, acredito que seja a hora de reconhecermos a precariedade do modelo vigente e sua improvável recuperação em tempo hábil. Um aparato regulatório apropriado, com fiscalização efetiva, pode atender ao desejo natural de seguradoras em atuar no segmento com o propósito constitucional da efetiva cobertura previdenciária. Caso a proposta seja aprovada, nos resta averiguar como será a respectiva regulamentação e, então, observar se os interesses de segurados e dependentes serão devidamente atendidos. Afinal, a proteção adequada e em tempo hábil é a missão de qualquer sistema previdenciário.